Nunca em toda a minha vida tive aquele aperto apreensivo no peito. Do tipo que faz cada pelo de seus braços eriçarem, o estômago revirar e deixa uma única certeza: As coisas irão piorar. E será em breve!
Consultei meu relógio de pulso. A pulseira, outrora marrom-claro, encontrava-se desgastada. A tela com leves rachaduras e batidas nos cantos. Já passava das 22h.
Meu corpo estava fundido com a névoa intensa que cobria a enorme fachada da casa. Ela passava por meu corpo como uma suave brisa, a balançar minhas madeixas ruivas e compridas, enlaçando-me como uma mãe acolhe o filho recém-nascido. Um calafrio veio de encontro à mim, encobrindo-me as entranhas. Senti naquele instante que poderia alcançar o paraíso, mas aquela sensação logo se foi, assim como a brisa se desfez.
Estava tão leve, saltitando sob as folhas secas caídas das árvores. Mal consegui ouvir meu respirar, tudo estava calmo. Pensei que estivesse morta, por um momento. Não estava. Sei disso. Aquilo não passava de um sonho, que de tão nítido, reproduziu o cenário com tamanha perfeição, queimando em minha mente. Era uma lembrança. De uma época muito distante, para que pudesse eu, afinal, recordar.
Minhas pernas bambas caminharam em direção ao portão da casa. Uma enorme teia de aranha o cobria a cada canto, seguidas por luminárias de brilho resplandecente em ambos os lados, quase ofuscando minha visão. Num simples toque de meus dedos, atravessei todo o portão, como se a névoa o tivesse transformado em nuvens de algodão.
A fachada da casa era de um ouro envelhecido, e os dizeres na enorme frontaria, indicavam que o lugar era pertencente de meus familiares:
Atravessei o portão, seguindo caminho por uma antiga trilha, onde árvores secas e sem vida cobriam a passagem, formando um grande emaranhado com aspecto sombrio. As folhas jogadas ao chão emitiam ruídos incômodos ao serem pisadas.
- Pensei que elas não fariam barulho! – exclamei, notando que meus pés não estavam mais deslizando pela alameda. Dessa vez, estava pisando firmemente.
Arrumei o vestido, na inútil tentativa de me livrar daquele pó em minha roupas.
Estava voltando ao normal. Sentia, agora, com mais precisão o peso de meu corpo sob as frágeis pernas.
A trilha era estreita, mas tentava a todo custo não emitir sons ao pisotear as folhas secas. A lua crescente me brindava com um enorme sorriso, à vista num céu sem estrelas. Cheguei ao fim da alameda e meu coração se apertou ao ver que outra garota já havia encontrado aquele caminho antes.
Era uma jovem bela. Observei sua silhueta esguia e bem definida por seu vestido roxo. Suas madeixas eram ruivas naturalmente. Sua pele clara era sardenta, o que acentuava ainda mais o azul de seus enormes olhos. Sua feição me apresentava preocupação. Ela estava procurando alguma coisa, embora me parecesse mais perdida do que eu naquele lugar.
Fui para perto dela, embora minha presença continuasse imperceptível.
- Ei! – exclamei, tentando chamar sua atenção, mas seu semblante permaneceu inalterado.
Ela subiu os três degraus de madeira que davam acesso à porta. Segui-a. Parou rente à porta. Eu, apenas copiei seu gesto, novamente, passos atrás. Ela puxou a maçaneta freneticamente, mas não teve resultado nenhum.
“Está trancada!”, praguejou para si mesma, precedendo um palavrão.
Um brilho travesso surgiu em seu olhar. Decidida, ela fechou os olhos durante alguns segundos. Concentrava-se. Sua testa estava franzida e as duas mãos ligeiramente elevadas.
Assustei-me e joguei meu corpo para trás quando vi o que estava acontecendo. A garota se transformava bem na minha frente. A parte de trás de seu vestido roxo começou a se rasgar. Ela se dobrou em sua barriga, contorcendo suas feições.
Corri até ela na tentativa de ajudá-la, mas minhas mãos apenas passaram através de seu corpo. Olhei para mim mesma, me dando conta de que nada daquilo era real. Eu ainda estava dormindo, embora pudesse sentir e ver tudo de forma tão clara e intensa.
Afastei-me da garota, que agora, entrava em metamorfose. Em suas costas, duas enormes asas surgiram. Brancas, como a neve ao tocar o chão, e tão expansivas e cheias de penas, como de uma majestosa ave.
Deu um passo atrás e tomou um leve impulso, mas suficiente para transportá-la até o telhado da casa. Meu corpo inconscientemente começou a segui-la. Fui jogada para cima, a acompanhando até o teto. As telhas eram vermelhas e brilhantemente organizadas, embora um enorme orifício estivesse em seu meio.
- Alguém já passou por aqui! – exclamei alto, minha voz invadindo o vazio.
Os ferros entrecruzados que sustentavam as paredes da casa abandonada pareciam prestes a desabarem. O telhado estremeceu sob meus pés. Olhei para baixo, sabendo que teria que pular.
“Vá, Natalie!”, uma voz gritava dentro de mim. “Você não tem nada a perder!”.
Fechei meus olhos, e sem pensar novamente, saltei. Senti um frio na barriga que me percorreu pelo estômago todo. Mas a sensação era boa.
Demorei até me dar conta que já havia atingido o chão. Abri os olhos, me deparando com a garota sob a mesa, e um homem à sua frente.
- Acho que vai chover. Não entendo como nenhuma gota de água ainda não caiu do céu. – o homem alto e loiro falou gravemente, aninhando um bebê em seu colo. Suas madeixas eram cacheadas, o que lhe dava certo aspecto angelical, mas apresentava severidade no semblante. O bebê dormia tranquilamente, como se em sua vida apenas houvesse paz.
- Jura que está preocupado com isso? – a jovem de cabelos rebeldes e ruivos retrucou. Suas asas se encolheram, até desaparecerem completamente. Suas pernas voltaram ao aspecto humano. – Então, você deveria consertar o telhado!
- Não precisa usar desse sarcasmo comigo. – o homem rebateu, levantando charmosamente o canto direito do lábio.
- Quer que eu use de outro? – perguntou ela, fazendo uma careta e descendo da mesa. Suas mãos seguravam sua cintura fina.
- Vamos parar com isso, Vit. – ele assumiu uma postura séria.
- Tudo bem. – Victoria respondeu, levantando as mãos em concordância. Seus olhos se concentraram no bebê que ele segurava. Ela parecia maravilhada pelo simples fato de estar tão perto da criança. – Você está se arriscando demais...
- Digo o mesmo a você! – piscou suavemente um dos olhos para ela.
- Você sabe o que o Conselho faria caso soubessem que você está me ajudando, Octavius. – ela respondeu, com melancolia em sua voz.
- É isso que os amigos fazem. – ele respondeu, decidido. – Ajudam uns aos outros.
- Então você acredita na minha inocência? – ela perguntou, olhando-o desconfiada. Sua sobrancelha esquerda se levantou, assim que concretizou sua dúvida.
- Mas é claro que sim! – ele rebateu, sem pestanejar. E olhando para o bebê em seu colo, completou: - Eu sei que você não faria uma crueldade dessas com sua família.
Ela fechou os olhos por um momento. Ele a encarou, arregalando os olhos, notando uma sutileza diferente em seus gestos. Compreendeu, com uma olhadela, tudo aquilo que ela se privava de dizer.
- Você não... – ele mal pode completar seu pensamento, levando as pontas dos dedos ao lábio, perplexo.
Senti uma inexplicável pontada no peito, assistindo sua agonia.
- Eu jamais faria essa crueldade! – ela respondeu, permitindo lágrimas rolaram em seu rosto. – Mas tive que fazer um sacrifício pelo bem da família. – sua última frase saiu em um breve sussurro.
- Eu não acredito que você fez isso, Victoria! – ele bradou, alterando seu tom de voz.
- Não foi minha culpa. Mas é a única maneira de salvar minha família. Livrá-la da maldição! – ela falou, enxugando as lágrimas.
- Não precisa dizer mais nada. – ela replicou, tocando os lábios dele, com suas unhas compridas e bem feitas. – Já não tenho mais a certeza de que tudo ficará bem... – Ela fez uma breve pausa, mas retomou em seguida. – Só me prometa uma coisa.
- O que você quiser!! – ele prontamente respondeu, sem hesitar, acenando afirmativamente.
- Você cuidará dele! – Victoria abaixou os olhos, fixando-os no bebê. – Você conseguiu mantê-lo vivo, mas não posso garantir por quanto tempo. A maldição não tardará a se realizar outra vez. Callum não pode ganhar! – ela respirou fundo, e senti que ainda não tinha acabado. – Caso eu não viva por muito tempo, terá que cuidar das Dolman também. Promete?
Levantei a sobrancelha, espantada, ao ouvi-la dizer um de meus sobrenomes.
- Quando será o momento certo para eles saberem de tudo? – questionou ele, já recuperado do choque que teve.
- Você saberá quando o momento chegar! Conte com o auxílio de Anna. – ela deu uma última piscadela para o homem alto, e olhando para o bebê, seus olhos se perderam no vazio.
Havia sumido, deixando apenas uma intensa névoa atrás de si.
Comecei a desaparecer. Me senti sumindo, caindo em um poço sem fundo, tentando me agarrar ao que quer que aparecesse em meu caminho, para não me aprofundar mais.
Mas o poço estava se tornando mais frio e escuro.
Tentei lutar com todas as forças, mas senti um medo me percorrer.
Acordei de um pulo em minha cama, meus olhos arregalados e um arrepio intenso em cada pelo de meu corpo. Aquela era apenas a sensação de que algo ruim estava para acontecer.
E foi mais rápido do que pude imaginar!
Em breve, novidades!